11 fevereiro 2010

África do Sul ainda busca se livrar da herança do apartheid


RIO - Há exatos 20 anos, num domingo glorioso de sol, Nelson Mandela deixava, a pé, a cela da cadeia Victor Vester, nos arredores da Cidade do Cabo, onde viveu 27 anos, seis meses e seis dias encarcerado pelo seu engajamento contra o regime brutal do apartheid. Acompanhado de Winnie, sua esposa à época, Mandela, ou Madiba, como preferem os sul-africanos, caminhava rumo ao mar de correligionários que o aguardava. O povo, ansioso para rever seu herói, parecia adivinhar o que o governo do então presidente Frederik De Klerk já sabia: que o apartheid, regime estatal de exclusão e uma das vertentes mais brutais de discriminação racial já vistas no mundo, não iria sobreviver por muito tempo. Com passos tímidos, braço erguido e punhos cerrados, Madiba caminhava em direção a uma nova África do Sul.


A decisão de De Klerk de libertar Nelson Mandela sem que este fizesse concessões em relação aos princípios de igualdade que sempre defendera, expôs a instabilidade interna de um sistema que já ruia, face ao isolamento a que o mundo o tinha condenado, e às inúmeras sanções internacionais que paralisavam a economia do país. Segundo os analistas, De Klerk não tinha, em 1999, outra opção, e fez apenas aquilo que poderia ter feito, libertando os prisioneiros políticos e legalizando partidos e sindicatos.


– O apartheid já estava no fim muito antes da libertação de Mandela – afirma José Gonçalves, economista angolano radicado no Rio e professor especialista nas relações Brasil-África na Universidade Cândido Mendes. – A primeira vez que visitei o país foi durante a independência da Namíbia, quatro anos antes do fim do apartheid. Na época, já havia a realização de festas mistas e namoros interraciais, que ainda eram considerados atos criminosos. Nesse sentido, já se tinha muita transgressão e sinais de que o regime estava à beira do esgotamento.

De fato, durante o discurso que proferiu diante da multidão que se concentrava na Cidade do Cabo a sua espera, Nelson Mandela fulminou:

– A nossa marcha para a liberdade é irreversível.

Presidente

Após a sua libertação, Mandela teve um papel decisivo como presidente do partido Congresso Nacional Africano (CNA) nas negociações que conduziram ao fim do apartheid. Em 1994, aos 75 anos de idade, tornou-se o primeiro presidente negro da África do Sul a ser eleito em um processo democrático.

Herança

Hoje, entretanto, 20 anos após a libertação de Mandela e 16 anos desde a primeira eleição multirracial do país que o consagrou presidente, a África do Sul ainda sente o peso da herança do apartheid.

Segundo Gonçalves, milhões de negros ainda vivem na miséria, e a taxa oficial de desemprego, de acordo com uma pesquisa publicada na terça-feira pelo governo sul-africano, é de 24,3% – índice semelhante ao existente nos meses que antecederam o fim do apartheid.

– Outro grande problema é que, apesar de hoje os diversos grupos raciais e étnicos terem os mesmos direitos e se respeitarem, eles ainda vivem segregados. – diz Gonçalves. – Não há convivência interracial, apesar de a segregação ser social e não política. As pessoas até procuram conviver harmoniosamente e o governo é misto, mas as marcas do passado são evidentes.


Mandela do Rio pede ajuda

Thiago Feres

O libertador e guerrilheiro Nelson Mandela se envolveria em mais uma causa se soubesse das precárias condições em que vivem os moradores da favela que leva seu nome, em Manguinhos (Zona Norte do Rio).

Em meio a tanta miséria, não é raro encontrar quem conheça a história de luta e determinação de Mandela. Pela janela de sua casa, a moradora Sandra Maria, 52, sonha.

– Seria um desafio e tanto para o velho Mandela. Nos livrar de toda essa dominação imposta. Acho que ele conseguiria fácil. Fez um trabalho bem mais difícil na África – afirma.

A comunidade, divida em três partes, Mandela I, II e III, nasceu em 1990 e foi batizada em homenagem ao líder africano. No local, 5 mil habitantes, 30% crianças, lutam diariamente contra os graves problemas de saúde, a maioria deles causados pela proximidade com os canais do Cunha e do Jacaré, onde é despejado, sem tratamento, todo o esgoto da população local. As mesmas águas são usadas como piscina pelas crianças, que mergulham felizes diariamente, sem saber dos graves danos que estão causando à própria saúde.

De dentro do barraco de madeira de Vilca Freire, 34, é possível ver o Canal do Jacaré pelos vãos do piso. Ela conta que sequer possui um banheiro dentro da sua residência.

– Fazemos as nossas necessidades fisiológicas num balde e despejamos no rio – afirma. – No último sábado, a madeira do piso cedeu e, por pouco, uma filha minha não caiu.

Próximo ao Canal do Cunha, a situação se repete. Até cobras já foram encontradas. A casa de madeira de Jussara Ualerif, 50, está afundando. Ela mora no barraco com as três filhas e é uma das fundadoras da favela.

– Estou acreditando na promessa de melhoria feita pelas autoridades. Não posso continuar morando aqui – diz.

Os problemas de habitação não são os únicos enfrentados pelos moradores. Muitos reclamam da falta de áreas de lazer para as crianças. Segundo a presidente da Associação de Moradores da favela Mandela I, Elcileni de Souza, a única obra visando o entretenimento foi feita por membros da própria comunidade:

– Construímos uma piscina numa das praças principais daqui. Faz a alegria dos jovens.

Um carro abandonado, conhecido como ratolândia, é o outro point de brincadeiras.

O lixo é outra grande preocupação, aliás, bastante visível pelas ruas da Mandela I. Segundo os moradores, a coleta é feita regularmente, mas está prejudicada pelas obras de pavimentação do PAC, que impedem o trânsito de caminhões.

Promessa de melhorias

O governo a prefeitura informaram que trabalham para acabar definitivamente com as péssimas condições em que vivem os moradores. O trabalho foi iniciado pelo diagnóstico social da população local, pagamento de indenizações e segue com obras.

De casamentos a circulação, tudo era regulado

Durante o regime segregacionista do apartheid, que vigorou na África do Sul de 1948 até 1990, o governo era controlado pelos brancos de origem holandesa e inglesa, os quais governavam apenas para os interesses da elite branca, como uma das fórmulas para manterem o domínio sobre a população nativa. Aos negros eram impostas várias leis, regras e sistemas de controles sociais, como a proibição de casamentos interraciais, circulação apenas em determinadas áreas da cidade e a criação de bairros e instalações públicas só para negros.


Segundo o professor José Gonçalves, o regime do apartheid promovia, por exemplo, a separação geográfica das residências, até mesmo financiando a casa própria para negros, desde que se localizassem nos guetos superpovoados determinados pelo governo. Com isso, o processo de segregação tornou-se “praticamente irreversível” até os dias de hoje, explica.

Para a coordenadora do Núcleo de Estudos Portugueses e Africanos (Nepa) da Universidade Federal Fluminense, Laura Padilha, o sonho de libertação absoluto dos negros sul-africanos tem mesmo um longo caminho a seguir.

– Hoje, você entra nos hotéis e percebe que os negros ainda são os subalternos. Nelson Mandela queria fazer da África uma sociedade arco-íris, mas este sonho ainda não se concretizou – diz.


A próxima conquista de Mandela: o Oscar 2010

O carisma que Nelson Mandela esbanjou na vida política e sua trajetória de luta contra o preconceito racial fizeram dele um personagem ideal para o cinema. Pela quarta vez, o ex-presidente sul-africano é vivido por um ator, depois de Danny Glover (Mandela, de 1987), Sidney Poitier (Mandela e De Klerk, de 1997) e Dennis Haysbert (Luta pela liberdade, de 2007). Desta vez vivido pelo ator americano Morgan Freeman no longa Invictus, o político pode dar a seu intérprete o Oscar de Melhor Ator, além do prêmio de Melhor Ator Coadjuvante a Matt Damon.


Dirigido por Clint Eastwood, Invictus é baseado no livro Playing the enemy: Nelson Mandela and the game that made the nation, de John Carlin, e se passa em 1995, quando o então presidente eleito da África do Sul tenta unificar a nação através da Copa do Mundo de Rúgbi, que seria realizada pela primeira vez no país. Mandela convida Francois Pienaar (Matt Damon), o capitão da equipe sul-africana de rúgbi – esporte praticado pela elite do país e tido como um símbolo da segregação racial – para incentivar a seleção nacional e a prática da modalidade. Premiado com o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por Menina de ouro (2004), Freeman é apontado com um dos favoritos ao troféu de ator na cerimônia do dia 7 de março. Se interpretar alguém que considera um mito vivo era o seu maior desafio, Freeman pode agora se dar por satisfeito em ver seu trabalho bem avaliado pela crítica e, principalmente, por Mandela.

– Se há algo difícil para um ator é interpretar alguém que ainda vive e que todos conhecem – comentou o ator, em entrevista recente ao The New York Times. – Sabendo o que eu sei dele, sua preocupação real não é pelo o que ele fez, mas pelo o que deixou de fazer. Mandela tinha obrigações na família que não podia cumprir por estar preso. O pai da nação é normalmente um pouco pai de família.

A ligação de de Morgan Freeman com a África do Sul e, consequentemente, com Mandela começou em 1992, com um papel no filme O poder de um jovem, um conto sobre um menino branco durante o fim do apartheid. Logo depois, ele dirigiu lá seu primeiro filme, Bopha! - À flor da pele, sobre um policial negro sul-africano em conflito, interpretado por Danny Glover. Sua missão de interpretar Nelson Mandela, no entanto, começou em 1994. Após uma conferência realizada para promover seu livro de memórias, Long walk to freedom, um jornalista perguntou a Mandela quem deveria interpretá-lo num suposto filme. O político respondeu em forma de um convite público ao ator.

– Ele disse que queria que eu fizesse o papel. E foi o que aconteceu. Toda a decisão foi tomada ali.

O produtor sul-africano Anant Singh, que comprou os direitos do livro para o cinema, conseguiu um encontro entre ator e personagem.

– Disse que se fosse interpretá-lo, teria de ter acesso a ele. Queria observá-lo de perto. E, onde quer que estivesse, em qualquer cidade, tive acesso – enaltece Freeman.

O diretor Clint Eastwood diz ter tentado retratar o carisma que sempre viu em Mandela.

– Vi, durante muitos anos, vários documentários sobre ele e suas representações no cinema. Mandela tem aquele sorriso de um milhão de dólares, que faz com que, quando ele entra numa sala, todos os presentes sorriam com ele – destaca Eastwood. – Fiquei emocionado quando estive na pequena cela onde ele ficou preso por 27 anos em Robben Island. Sair de lá como ele fez e deixar tudo para trás é algo quase impossível de ser imaginado.

Invictus estreou no circuito nacional em 29 de janeiro e, até o último domingo, a produção atraiu 137.316 espectadores, arrecadando R$ 433.362 – nos EUA, a bilheteria acumulada foi de US$ 35,8 milhões. No Rio, Invictus permanece em cartaz em 10 salas.


Fonte: Joana Duarte, Jornal do Brasil